Considero a opinião abaixo a mais sensata, inteligente e bem humorada sobre o episódio Maitê. A ironia rasgada de Ferreira Fernandes conquistou-me imediatamente! O vídeo foi mesmo ridículo, mas a reação a ele tomou uma proporção absurda! Bom, leiam a opinião do jornalista e vejam o que é o verdadeiro humor inteligente.
Homenagem a Maitê e aos anti-Maitê
A PORTUGUESA começou por se cantar assim: «Contra os bretões marchar, marchar…» Depois, tendo alguma dificuldade em decidir se marchávamos contra os da península francesa ou os da grande ilha em frente, mudámos a letra e passámos a marchar contra quem fizesse um vídeo contra nós. O da Maitê vem na esteira de uma longa tradição que bebe em Lord Byron que disse (deve ter gravado mas eu não encontro no YouTube) que as portuguesas têm bigode. Desde aí, metade da nossa política externa é passada a enquadrar a coisa nas devidas proporções: «É buço. Simples buço.»
Essa, repito, a posição diplomática, porque a do povo propriamente dito é mais drástica: «Se alguém dissesse que a minha mulher tinha bigode dava-lhe uma cachaporrada nos cornos que não se endireitava mais», disse o Chico da adega. Este último testemunho também não está no Youtube porque não podem entrar câmaras de vídeo no estabelecimento prisional de Alcoentre, onde o Chico cumpre pena por violência doméstica.
O que me ofendeu mais no vídeo da Maitê – sim, também o estudei cuidadosamente – foi aquela parte em que ela chamou um técnico de informática ao quarto, este chamou o porteiro e ambos se puseram a olhar para o portátil da artista como um boi para um palácio. O que me irritou foi a surpresa subliminar de Maitê. Ela estava convencida de que em Portugal os técnicos de informática não se comportam exactamente como os técnicos de informática de todo o mundo. A gente chama-os, eles dizem «hmmm…», teclam os botões ctrl alt Gr U, e dizem: «Desligue e volte a ligar… Hmmm…» Os nossos técnicos dizem é o hmmm de forma mais gutural, nada que ver com hmmm gostoso dos técnicos de informática de Jacarepaguá.
Outra coisa: ela disse que Portugal foi governado pelo ditador Salazar «durante mais de vinte anos». É, ela disse mesmo isso: «durante mais de vinte anos»! Até onde vai a ignorância destes estrangeiros?! Todos nós sabemos que Getúlio Vargas (até digo mais, Getúlio Dornelles Vargas) foi por duas vezes Presidente da República do Brasil, na primeira vez, de 1930 a 1945, governou o Brasil em três fases distintas, de 1930 a 1934, no governo provisório, de 1934 a 1937, no governo constitucional, eleito pelo Congresso, e de 1937 a 1945, no Estado Novo; e da segunda vez, de 1951 a 1954, governou o Brasil como Presidente eleito pelo voto directo. Sabemos tudo isso na ponta da língua e, vai-se a ver, uma brasileira nem sabe que Salazar era de Oliveira.
Os estrangeiros, digo-o sem ofensa, são diferentes e os piores insistem em ver coisas diferentes em nós. A Maitê parou em frente de uma casa em Sintra e, deu-lhe para aquilo, criticou o número da porta, um 3, que estava ao contrário. Apetece dizer: os números, cá em casa, nós martelamos como queremos, tá? A mim também me engalinha que haja palavras nas bandeiras e não ando para aí a fazer vídeos. Embora «ordem e progresso» ainda entenda. Agora que suspeito dos rabiscos da bandeira saudita, suspeito. Mesmo por uma questão de segurança. De cada vez que passo no Restelo, na Embaixada da Arábia Saudita, e vejo as garatujas (que acabam com uma cimitarra, lembro) ninguém me tira da cabeça que aquilo são mensagens para o Bin Laden. O que disse mais a Maitê? Ah, nos Jerónimos, cuspiu. Num blogue, o comentário de um compatriota indignado propunha que um português devia ir ao Cristo do Corcovado e cuspir. Eu acho que o conselho já vem tarde. Suspeito que já algum português deve ter ido ao Corcovado e, portanto, suspeito também que – e mais não digo para não atiçar o conflito entre os dois países.
Esta semana as televisões nacionais apresentaram o vídeo em telejornais de horário nobre. Tendo as graçolas de Maitê sido feitas e apresentadas num programeco de piadolas, há dois anos, receio que o episódio alimente o anedotário sobre os Manuéis em Vera Cruz: «Português? A gente faz piada e ele reage não na hora, mas no horário – no horário nobre, dois anos depois…» Eu também cá estou com assunto, mas não tresleiam. O que me incomoda não é Maitê, tonta. O que me incomoda é o que anuncia o sintoma desta indignação nacional. Cito George Orwell: «Nacionalismo é uma poderosa raiva temperada pela decepção de si próprio.» Escusava-se era de carregar tanto na decepção.
Ferreira Fernandes
Ferreira Fernandes
jornalista
ferreira.fernandes@dn.pt
NOTÍCIAS SÁBADO' 17 OUTUBRO 2009Outras opiniões do jornalista onde cita o caso:
Ele há indignações estranhas
Petição contra as petições tolas do Twitter
E abaixo o programa Eixo do Mal, da SIC, exibido 19/10, com Clara Ferreira Alves, Daniel Oliveira, Luís Pedro Nunes, Nuno Artur Silva e Pedro Marques Lopes.